Esquizoanálise na prática: como a clínica de La Borde revolucionou o tratamento da psicose - Carta 16
Na Clínica de La Borde, pacientes psicóticos reinventam existências através de atividades coletivas, como cozinhar, que dissolvem hierarquias médico-paciente.
Querida(o) aluna(o),
Espero que esteja bem e que as reflexões compartilhadas em nossa última correspondência tenho ecoado em seus estudos. Nesta carta, avançaremos na exploração da Esquizoanálise, agora direcionando nosso olhar para sua aplicação clínica e institucional, bem como para sua crítica radical aos reducionismos da psicanálise lacaniana. Aprofundaremos a relação entre teoria e prática, descrevendo como a metamodelização esquizoanalítica opera em contextos terapêuticos concretos, como a Clínica de La Borde, e confronta os limites do estruturalismo linguístico.
Guattari desloca a terapia do consultório individual para o espaço coletivo da instituição, transformando-a em um laboratório de subjetivação transversal. Na Clínica de La Borde, fundada por Jean Oury, a psicose não é medicalizada como "doença a ser curada", mas abordada como um processo de reinvenção existencial. O exemplo paradigmático que o autor apresenta é a cozinha, um território que transcende sua função utilitária para se tornar um "palco de ópera" onde corpos, gestos, ingredientes e afetos se entrelaçam em uma coreografia caosmótica.
“Por que a cozinha?”
A cozinha é um cruzamento de fluxos — alimentos, conversas, hierarquias (chef e ajudantes), elementos naturais (fogo, água) e culturais (receitas, rituais). Pacientes psicóticos, muitas vezes bloqueados na comunicação linguística, encontram na cozinha um meio assignificante para expressar afetos através de gestos (amassar pão, cortar legumes) e interações não mediadas por interpretações simbólicas. A hierarquia tradicional (médico-paciente) dissolve-se em uma rede de responsabilidades partilhadas. O ato de cozinhar torna-se um "enxerto de transferência" que não se restringe à relação dual, mas envolve o grupo, o espaço físico e até objetos (panelas, talheres e demais instrumentos).
A cozinha, assim, funciona como um "analisador parcial" — um dispositivo que revela dinâmicas inconscientes coletivas. Seu sucesso terapêutico depende de sua abertura transversal a outros núcleos da instituição (horta, oficinas de arte, reuniões). Quando esses espaços se fecham em rotinas estereotipadas ("ritornelos mecânicos"), a instituição petrifica; quando se mantêm porosos, tornam-se máquinas de agenciamento que recompõem territórios existenciais frágeis.
Guattari abre uma crítica a ideia de que o Inconsciente é estruturado como uma cadeia de significantes, o coração do projeto lacaniano. Para a Esquizoanálise, essa visão é insuficiente, e até nociva, por três razões:
Reducionismo semiótico: Lacan homogeneíza todas as semióticas (gestos, imagens, ritmos) sob o jugo da linguagem, ignorando que a subjetividade emerge de sistemas de signos heterogêneos (sonoros, táteis, cinéticos).
Linearidade alienante: A "fundamental linearidade" do Significante (herdada de Saussere) não captura a multidimensionalidade dos territórios existenciais. Enquanto Lacan vê o Fort-Da freudiano como um jogo fonético ("Oooo" = Fort/Da), a Esquizoanálise o interpreta como um ritornelo corporal que articula ausência, presença e intensidades afetivas não traduzíveis em palavras.
Negação do não-humano: O estruturalismo exclui processos maquínicos (tecnologias, ecossistemas) e dimensões cósmicas (devires-animal, vegetal) que participam da subjetivação.
Freud vê o jogo da criança como repetição traumática da ausência materna, vinculada à pulsão de morte. Lacan reduz o Fort-Da a uma "estrutura significante", um exercício de dominação simbólica sobre a falta. A Esquizoanálise propõe que o Fort-Da é um ritual assignificante — a criança não repete um trauma, mas experimenta a potência de criar ritmos (jogar/recuperar, desaparecer/reaparecer) que modulam sua relação com o mundo. O "Oooo" não é um significante, mas um operador maquínico que conecta corpo, objeto e espaço em uma dança existencial.
Assim, a Esquizoanálise amplia o conceito de transferência para incluir agenciamentos não-humanos:
Máquinas técnicas: Computadores, redes sociais, instrumentos musicais — dispositivos que não são "ferramentas", mas parceiros de subjetivação.
Ecossistemas: A horta de La Borde não é um cenário passivo; ela participa da terapia como um devir-vegetal que convida os pacientes a se reconectarem com ciclos de crescimento e decomposição.
Cosmologias singulares: O delírio psicótico não é um "erro", mas um universo em gestação — um mito pessoal que constela imagos cósmicos (estrelas, deuses antigos) e maquínicos (robôs, satélites).
Nessa perspectiva, o psicótico não é um "caso clínico", mas um cartógrafo de mundos possíveis. A terapia esquizoanalítica busca recompor seus territórios existenciais (corporal, social, imaginário) sem impor modelos normativos. O objetivo não é a "cura", mas a criação de consistência — tornar habitáveis os universos que ele habita.
Caosmose não se restringe à psicoterapia; ele esboça um projeto de transformação social. É possível intervir em escolas, pois são espaços de agenciamento coletivo, onde alunos e professores co-criam currículos a partir de interesses transversais (arte-ciência-ecologia). Bairros e cidades são projetados como teias de territórios, onde praças, mercados e centros culturais funcionam como "cozinhas institucionais", espaços de encontro assignificante.
O capitalismo neoliberal produz subjetividades normopáticas (sujeitos adaptados, mas esvaziados). A Esquizoanálise propõe revoluções moleculares — micropráticas de resistência que reencantam o cotidiano (ex: oficinas comunitárias, rituais de escuta coletiva).
Cara aluna, a Esquizoanálise não é uma teoria, mas uma prática de vida, uma ética, um auxilio para navegar mares onde significação e não-sentido, humano e não-humano, indivíduo e coletivo, se entrelaçam. Enquanto Lacan nos deixou um mapa do deserto simbólico, a Esquizoanálise nos oferece uma bússola feita de fragmentos, capaz de detectar ritornelos de esperança nas dobras do caos.
Sugiro, como exercício final, que reflita sobre como espaços cotidianos (sua casa, a universidade, um parque) poderiam ser ressignificados como "cozinhas institucionais". Que gestos, ritmos ou objetos nesses locais poderiam funcionar como operadores de subjetivação coletiva? Como escapar da lógica do "Fort-Da lacaniano" para abraçar um "Fort-Da maquínico", onde ausência e presença são notas de uma sinfonia maior?
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Assim, espero que esta carta tenha ajudado a esclarecer algumas das ideias centrais desse texto tão denso. Se precisar discutir mais ou tiver dúvidas, estarei aqui para continuar essa conversa.
Com alegria,
Lucio F S Gimenes.
Esta carta integra um projeto no qual busco sintetizar meus estudos sobre Caosmose e a esquizoanálise, visando oferecer apoio a todos que desejam se aventurar por essas reflexões.
Como professor de Psicologia, frequentemente encontro alunas e alunos curiosas sobre essas ideias, mas que não encontram espaço para explorá-las nas grades curriculares tradicionais.
Diante da complexidade intrínseca desses textos, espero que estas cartas possam funcionar como uma ferramenta útil, tornando essa jornada mais acessível e interessante. Essa é, ao menos, a intenção que me guia.